domingo, 14 de abril de 2013

#56

Alice vive perdida dentro de si algures no interior de Portugal. Numa casa de pedra, deixou de contar os anos que fazia quando, aos 81, uma amiga de infância de uma aldeia vizinha, trazida pelo filho, a visitou, pela data do seu aniversário, 15 de Agosto. Riram, choraram e beberam limonada. Não voltou a vê-la. Aliás, gente é bicho que pouco vê. Na estrada de pedras soltas que chocalham em dias de muita chuva e que passa junto à sua porta, passam-se dias sem ver vivalma. Turistas perdidos confirmam a regra da solidão. Não os entende e gesticula, sorrindo, apontando a estrada da serra. Vê-os partir mas gostava que ficassem um pouco.

Por companhia tem o crepitar da lareira e um gato cinzento com quem desabafa e a quem chama Menino. A televisão, a única ligação ao mundo dos outros, deixou de funcionar. Disse-lhe, um dos pouco vizinhos que ainda pergunta por ela e que lhe faz alguns recados na vila próxima, que seria preciso comprar uma caixa para voltar a dar vida ao aparelho. "Modernices de quem quer tirar tudo à gente" - disse ele, na altura. Prometeu trazer-lhe uma. Nunca o fez. Alice também não ousou pedir, não quis dar mais trabalho.

Da janela vê a serra que a viu nascer. É linda. Ali, onde ficava uma torre de vigia de madeira alinham-se agora enormes cata-ventos que, dizem, são a energia do futuro. Tudo o que lhe vai faltando: energia e futuro. Passa muitas horas a ver girar as enormes pás que, ao sol e à chuva, marcam o tempo e a transportam para memórias felizes. Tem saudades do Joaquim. O marido, como tantos outros naquela época, caiu fulminado pela silicose que varria a mina ali perto, onde este trabalhava dias seguidos sem protecção adequada. Sofreu muito antes de morrer. Ela continua a sofrer. Do único filho, José, e da neta, Cristina, não tem notícias há quase seis anos. Talvez ainda esteja em França. Gostava de os rever, nem que fosse uma última vez. Acende uma vela e reza, todos os dias, para que o Zé e a Tininha estejam bem.

Alice é um dos retratos do país que somos. Vive perdida numa aldeia no sopé da serra, mas podia viver numa das avenidas movimentadas da capital. Vive aprisionada dentro de si mesma. Não pede muito porque não pode e porque não quer ter o silêncio por resposta. Afinal, com o silêncio vive ela todos os dias. É a única companhia que tem por certa, até morrer.

Tiago Mesquita

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