Está à rasca a geração dos pais que educaram os seus
meninos numa abastança caprichosa, protegendo-os de dificuldades e
escondendo-lhes as agruras da vida. Está à rasca a geração dos filhos que nunca
foram ensinados a lidar com frustrações. A ironia de tudo isto é que os jovens
que agora se dizem (e também estão) à rasca são os que mais tiveram tudo. Nunca
nenhuma geração foi, como esta, tão privilegiada na sua infância e na sua
adolescência. E nunca a sociedade exigiu tão pouco aos seus jovens como lhes
tem sido exigido nos últimos anos.
Deslumbradas com a melhoria significativa das condições
de vida, a minha geração e as seguintes (actualmente entre os 30 e os 50 anos)
vingaram-se das dificuldades em que foram criadas, no antes ou no pós 1974, e
quiseram dar aos seus filhos o melhor.
Ansiosos por sublimar as suas próprias frustrações, os
pais investiram nos seus descendentes: proporcionaram-lhes os estudos que fazem
deles a geração mais qualificada de sempre (já lá vamos...), mas também lhes
deram uma vida desafogada, mimos e mordomias, entradas nos locais de diversão,
cartas de condução e 1.º automóvel, depósitos de combustíveis cheios, dinheiro
no bolso para que nada lhes faltasse. Mesmo quando as expectativas de primeiro
emprego saíram goradas, a família continuou presente, a garantir aos filhos
cama, mesa e roupa lavada.
Durante anos, acreditaram estes pais e estas mães estar a fazer o melhor; o dinheiro ia chegando para comprar (quase) tudo, quantas vezes em substituição de princípios e de uma educação para a qual não havia tempo, já que ele era todo para o trabalho, garante do ordenado com que se compra (quase) tudo. E éramos (quase) todos felizes. Depois, veio a crise, o aumento do custo de vida, o desemprego, ... A vaquinha emagreceu, feneceu, secou. Foi então que os pais ficaram à rasca.
Durante anos, acreditaram estes pais e estas mães estar a fazer o melhor; o dinheiro ia chegando para comprar (quase) tudo, quantas vezes em substituição de princípios e de uma educação para a qual não havia tempo, já que ele era todo para o trabalho, garante do ordenado com que se compra (quase) tudo. E éramos (quase) todos felizes. Depois, veio a crise, o aumento do custo de vida, o desemprego, ... A vaquinha emagreceu, feneceu, secou. Foi então que os pais ficaram à rasca.
Os pais à rasca não vão a um concerto, mas os seus
rebentos enchem Pavilhões Atlânticos e festivais de música e bares e discotecas
onde não se entra à borla nem se consome fiado. Os pais à rasca deixaram de ir
ao restaurante, para poderem continuar a pagar restaurante aos filhos, num país
onde uma festa de aniversário de adolescente que se preza é no restaurante e
vedada a pais. São pais que contam os cêntimos para pagar à rasca as contas
da água e da luz e do resto, e que abdicam dos seus pequenos prazeres para que
os filhos não prescindam da internet de banda larga a alta velocidade, nem dos
qualquercoisaphones ou pads, sempre de última geração.
São estes pais mesmo à rasca, que já não aguentam, que
começam a ter de dizer "não". É um "não" que nunca
ensinaram os filhos a ouvir, e que por isso eles não suportam, nem compreendem,
porque eles têm direitos, porque eles têm necessidades, porque eles têm
expectativas, porque lhes disseram que eles são muito bons e eles querem, e
querem, querem o que já ninguém lhes pode dar!
A sociedade colhe assim hoje os frutos do que semeou durante pelo menos duas décadas. Eis agora uma geração de pais impotentes e frustrados.
A sociedade colhe assim hoje os frutos do que semeou durante pelo menos duas décadas. Eis agora uma geração de pais impotentes e frustrados.
Eis agora uma geração jovem altamente qualificada, que
andou muito por escolas e universidades mas que estudou pouco e que aprendeu e
sabe na proporção do que estudou. Uma geração que colecciona diplomas com que o
país lhes alimenta o ego insuflado, mas que são uma ilusão, pois correspondem a
pouco conhecimento teórico e a duvidosa capacidade operacional. Eis uma geração
que vai a toda a parte, mas que não sabe estar em sítio nenhum. Uma geração que
tem acesso a informação sem que isso signifique que é informada; uma geração
dotada de trôpegas competências de leitura e interpretação da realidade em que
se insere. Eis uma geração habituada a comunicar por abreviaturas e frustrada
por não poder abreviar do mesmo modo o caminho para o sucesso. Uma geração que
deseja saltar as etapas da ascensão social à mesma velocidade que queimou
etapas de crescimento.
Uma geração que distingue mal a diferença entre emprego
e trabalho, ambicionando mais aquele do que este, num tempo em que nem um nem
outro abundam. Eis uma geração que, de repente, se apercebeu que não manda no
mundo como mandou nos pais e que agora quer ditar regras à sociedade como as
foi ditando à escola, alarvemente e sem maneiras.
Eis uma geração tão habituada ao muito e ao supérfluo
que o pouco não lhe chega e o acessório se lhe tornou indispensável. Eis uma
geração consumista, insaciável e completamente desorientada. Eis uma geração
preparadinha para ser arrastada, para servir de montada a quem é exímio na arte
de cavalgar demagogicamente sobre o desespero alheio. Há talento e cultura e
capacidade e competência e solidariedade e inteligência nesta geração?
Claro que há. Conheço uns bons e valentes punhados de
exemplos! Os jovens que detêm estas capacidades-características não encaixam no
retrato colectivo, pouco se identificam com os seus contemporâneos, e nem são esses
que se queixam assim (embora estejam à rasca, como todos nós). Chego a ter a
impressão de que, se alguns jovens mais inflamados pudessem, atirariam ao
tapete os seus contemporâneos que trabalham bem, os que são empreendedores, os
que conseguem bons resultados académicos, porque, que inveja! que chatice!, são
betinhos, cromos que só estorvam os outros (como se viu no último Prós e
Contras) e, oh, injustiça!, já estão a ser capazes de abarbatar bons ordenados
e a subir na vida.
E nós, os mais velhos, estaremos em vias de ser caçados
à entrada dos nossos locais de trabalho, para deixarmos livres os invejados
lugares a que alguns acham ter direito e que pelos vistos - e a acreditar no
que ultimamente ouvimos de algumas almas - ocupamos injusta, imerecida e indevidamente?!!!
Novos e velhos, todos estamos à rasca. Apesar do tom desta minha prosa, o que
eu tenho mesmo é pena destes jovens. Tudo o que atrás escrevi serve apenas para
demonstrar a minha firme convicção de que a culpa não é deles. A culpa de tudo isto
é nossa, que não soubemos formar nem educar, nem fazer melhor, mas é uma culpa
que morre solteira, porque é de todos, e a sociedade não consegue, não quer,
não pode assumi-la. Curiosamente, não é desta culpa maior que os jovens agora
nos acusam.
Haverá mais triste prova do nosso falhanço?
Mia Couto
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